Tuesday, March 27, 2007

alheava – passeio

Edição de página de jornal

com artigos publicados no jornal NOTICIAS

de Moçambique e fotografias

Apresentado no Espaço transportável em Guimarães
http://www.espacotransportavel.blogspot.com/
Curadoria de Luís Ribeiro



COMUNICADO PRESIDENCIAL

«As cidades e os aglomerados populacionais que mais foram marcadas pelo estigma da discriminação racial e social e da exploração capitalista no nosso país, »

«Elas reflectem de uma maneira gritante todas as contradições, injustiças, divisõe

s e preconceitos da sociedade colonial portuguesa baseada no racismo e no capitalismo. A população vive dividida segundo a raça, a cor da pele e classe social.

« Ao mesmo tempo o direito ao alojamento, que corresponde à satisfação de uma necessidade essencial e elementar de cada cidadão e da sua família, é objecto de uma especulação sem limites que conduz ao enriquecimento escandaloso de um certo sector da burguesia colonial.

«o povo moçambicano continua assim, apesar da conquista da sua independência política a

ser discriminado, humilhado e explorado no seu próprio país, a mais das vezes por aqueles mesmos que durante todo o período colonial foram agentes, cúmplices ou beneficiários passivos da situação colonial.

«esta situação de discriminação e de exploração é incompatível com os objectivos da República Popular de Moçambique e com a dignidade e liberdade do povo moçambicano. A fim de pôr termo a esta situação, o governo da República Popular de Moçambique decidiu adoptar as medidas a seguir enunciadas:

«1. Cada família tem o direito a ser proprietária da sua própria habitação. Aceita-se também que possa ter uma casa ou apartamento de repouso em local de praia ou de campo.

«2. Revertem imediatamente para o Estado todos os prédios ou partes de prédios de rendimento.

São considerados prédios de rendimento os edifícios que, sendo destinados a habitação ou outros fins, tais como comércio, industria ou agricultura, «não sejam ocupados pelos actuais proprietários.

«3. Tratando-se de prédios cujos proprietários tenham efectuado investimentos próprios ainda não amortizados pelos rendimentos, esses proprietários serão indemnizados em termos a fixar em diploma legal, em função do montante não amortizado.

«4. O Estado assegurará uma renda vitalícia aos actuais proprietários quando tenham como único meio de subsistência o rendimento de prédios e que por virtude da idade avançada, condição física ou outra incapacidade não tenham possibilidade de garantir o seu sustento e da família a seu cargo.

«5. Os indivíduos que sejam proprietários de prédios, mas residam noutro prédio, arrendado ou não, poderão declarar em qual das suas casas pretendem habitar.

Dessa opção será dado conhecimento ao inquilino que deverá desocupar o prédio no prazo máximo de noventa dias.

«6. Não poderão ser vendidos, cedidos ou por qualquer forma alienados imóveis sem prévia autorização do Estado.

«7. Os imóveis em construção cujos proprietários apresentem provas da sua utilização futura pelos próprios para habitação ou outros fins, designadamente comércio, indústria, agricultura, não são considerados prédios de rendimento.

A esses imóveis só se aplicará a reversão para o Estado se os proprietários não promoverem o prosseguimento normal das obras.

«8. Até a criação de órgãos apropriados, competirá ao Montepio de Moçambique e suas delegações receber as rendas, administrar e conservar os prédios que passam a constituir património do Estado.

«Até novas orientações, os inquilinos continuam a pagar o valor das actuais rendas. Os inquilinos que ainda não tenham pago as rendas referentes ao mês de Fevereiro, deverão fazê-lo até 10 a 15 do mês corrente, no Montepio de Moçambique, sem quaisquer adicionais ou multas.

«As medidas agora tomadas inserem-se no combate permanente do povo moçambicano sob a direcção da FRELIMO, pela conquista e consolidação da independência Nacional, da dignificação do homem moçambicano, da libertação económica social e cultural do nosso país e da nossa sociedade.

«Elas constituem uma concretização das aspirações de todo o povo moçambicano pelas qu

ais tombaram os melhores dos seus filhos, os heróis que hoje homenageamos.

«Os objectivos das decisões tomadas são:

«1.º - Liquidar o racismo, a discriminação racial e social que ainda existem na nossa sociedade, na nossa cidade.

Liquidar o racismo, acabar com a divisão para criar as bases da verdadeira unidade, unidade de todo o povo sem distinções baseadas na raça ou na cor da pele.

«2.º - Permitir ao povo tomar a cidade vivendo nela.

A cidade não deve pertencer aos exploradores, não deve continuar a ser propriedade dos capitalistas que desprezam os trabalhadores.

A cidade deve ser uma face moçambicana.

O povo vai poder viver na sua própria cidade e não no quintal da cidade.

«3.º - Organizar no seio da cidade, nos bairros, nos quarteirões, nos prédios, uma verdadeira vida colectiva.

Organizar a democracia no seio da cidade, de modo a que todos participem na discussão e resolução dos problemas da vida colectiva, da vida de todos e de cada um.

«Deste modo estaremos a criar as bases para o exercício do Popder Popular Democrático, o alicerce político da nossa Sociedade.

Presidente da FRELIMO e da Republica Popular de Moçambique, Samora Machel

Publicado NOTÍCIAS, Maputo, quinta-feira, 5 de Fevereiro de 1976






CONSTANTINO GIL MARQUES

UM AMIGO QUE PARTIU DESTE VALE DE LÁGRIMAS

A notícia percorreu, célere, a cidade, mergulhando em expectativa quantos conheciam Constantino Gil Marques Maia, mais propriamente «o Maia», estendendo-se, ao depois, para além das suas portas, provocando um movimento de interesse pela saúde que perigava.

Transportado para casa de saúde do Marrer, aí lhe foram progalizados todos os recursos da ciência, mas em vão. Decorridos breves dias, «o Maia» entregava a alma a Deus, abandonando seu espírito adamantino este vale de lágrimas a onde afeiçoara tantas e invejáveis qualidades que o exornavam.

Pesada, amarfalhante, ecoou a má nova: finara-se um colono há dezenas de anos ra

dicado no norte, um amigo de Nampula, um pacífico cidadão incapaz de fazer mal a alguém, um exemplar marido e pai que levara uma existência de trabalho esforçado, agarrado à terra, estimando e estimado por todos, nunca olhando a sacrifícios, dando um constante exemplo de apego e fidelidade ao lar que construíra mercê de invulgar tenacidade.

-- Um bom homem! – ouvia-se de todos os lados, logo após o passamento.

Realmente assim era: um bom homem, um homem sério, leal, de boas contas, respeitador.

Conheci Constantino Gil Marques Maia, por volta de 1952, em António Enes, vila que estimava e a que o prendiam os interesses da sua intensa vida comercial e de construtor exímio. Sempre bem disposto, galhofeiro, impressionou-me agradavelmente. Fui contactando mais e mais com ele, acabando por admirá-lo numa localidade bastante divorciada da bondade, do humanitarismo – das palavras lavadas.

Apresentou-me à consideração milhentos problemas, sobretudo de ordem económica, dissertando com facilidade e conhecimento de causa, socorrendo-se, não apenas da imensa experiência acumulada durante anos mas também e sobretudo da limpidez de raciocínio com que o Criador o dotara, exprimindo-se sem deixar margem a dúvidas, com desassombro, boa fé e às vezes uma ponta de tristeza que não conseguia esconder quando percebia direitos feridos ou intenções desvirtuadas que prejudicavam a comunidade.

Um dos seus cavalos de batalha era a liberdade de preços, filha consanguínea da livre concorrência, como fautor de estabilidade e defesa do consumidor, argumentando que o custo e a venda, por mais voltas que se dessem e teoremas que se congeminassem e teorias que se elevassem como frágeis castelos, sempre dependeriam dos bons e dos maus anos agrícolas, todo o resto se ficando em ideias que até ao presente, apesar dos esforços desesperados de muitos estudiosos, nunca lograram vida saudável.

O falecimento do querido amigo veio lembrar, uma vez mais, a transitoriedade da vida onde somos viajeiros e gritar-nos que tudo passa, que viemos do pó e para ele regressaremos um dia. Que Deus, alfa e ómega de todas as coisas, nos criou à sua imagem e semelhança e portanto nos compete servir só, e apenas, na verdade, em verdade, pela verdade, mesmo correndo o risco de ficarmos sós!

Que desgosto, quando reparamos que tantos gastam os dias numa frustração completa de si mesmos, enganando o semelhante, quase tentando enganar-se a si próprios, esquecidos que ao divino dador ninguém engana porque Ele também não nos engana a nós!

E que alegria nos inunda a alma ao podermos testemunhar que «o Maia» foi um homem bom e sincero!

Partiste, amigo inolvidável, e foste recebido em festa pelo coro dos anjos, porque cumpriste o teu dever! A cidade acorreu a prestar-te as últimas homenagens de que eras merecedor, até porque muito do que ela é, to ficou a dever através de tantos prédios que falam do teu nome, que hão-de invocar através dos anos, a tua memória!

E eu amigo querido, nem sequer pude ir junto à campa que recebeu o teu corpo de martírios a lançar-te um punhado de terra e a desfolhar as pétalas da última e mais intensa saudade!

Mas para além do gesto simbólico, não esqueci pelo menos uma prece que se era de desejo de que descanses em paz era também de invocação para que peças por todos nós que vamos

continuar a tua obra, bem agarrados a esta terra que é nossa, que nos enfeitiçou como a ti, que te amortalha e nos há-de, talvez, amortalhar também um dia que oxalá seja na altura em que tenhamos a folha de serviços bem informada como tu tinhas a tua recheada de boas acções!

Reza por nós, amigo!

Recomenda-nos!

Eduardo de Canavezes

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NECROLOGIA

CONSTANTINO GIL MARQUES MAIA

(DA NOSSA DELEGAÇÃO)

NAMPULA, 1 – Via Telegráfica

- No Marrer, faleceu hoje de manhã o sr. Constantino Gil Marques Maia, de cinquenta e três anos, natural da Figueira da Foz e velho residente na cidade. Era pessoa muito consideradad, e o seu falecimento causou, por isso, geral consternação. O extinto era casado co D. Celeste Gil Marques Machado e o funeral realiza-se para o cemitério de Nampula, às 9.30 horas.

«Diário de Moçambique» apresenta sentidas condolências à família enlutada.


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Constantino Gil Marques Maia

AGRADECIMENTO

CELESTE GIL MARQUES MACHADO, ANTÓNIO MAIA, JOSÉ MAIA E FAMÍLIA, vêm por este meio, na impossibilidade de o fazerem directamente, agradecer a todos quantos se

interessaram pela saúde de seu marido, pai e parente e o acompanharam à última morada.

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Constantino Gil Marques Maia

AGRADECIMENTO

Sua mulher e filhos, vêm por este meio agradecer aos Ex.mos senhores doutores RUI DE OLIVEIRA, CARLOS ALBERTO e COSTA MATOS, bem como a todo o pessoal de enfermagem da Casa de Saúde do Marrer, a dedicação e carinho com que trataram seu marido e pai.

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DIÁRIO DE LOURENÇO MARQUES ---- 12/4/1962









Monday, March 5, 2007

texto Cristina Alves - alheava_dentro_o mar

Alheava – dentro_o mar

instalação (vídeo, escultura, fotografia, objectos)

2003

Salão Olímpico

Porto






“Alheava – dentro_o mar” de Manuel Santos Maia

“dentro_o mar” faz parte da série de trabalhos do projecto “Alheava”, que Manuel Santos Maia tem vindo a desenvolver ao longo do último ano a partir de um processo de construção repartido em várias fases.

A nível temático, o projecto “Alheava” aborda as vivências nas antigas colónias portuguesas, com todas as mudanças que ocorreram após a descolonização. Todas as mostras evidenciam o processo sensível e emocional que aí esteve e está implicado, e são no seu conjunto como que retratos simbólicos, vestígios documentais de uma situação que marcou a história pessoal de quem por lá passou e, de um ponto de vista mais colectivo, a própria história de Portugal.

O projecto “Alheava” segue uma orientação essencial, resgatar a memória num retorno a um passado através de diferentes registos. No Olímpico, Manuel Santos Maia expõe as suas deambulações, partilhando os seus registos e impulsionando o soltar de reflexões em comunhão com o Outro: num reencontro com a memória.

Extraídas do seu álbum de bebé, as fotografias da cidade e da província Nampula, onde viveu com a família, em Moçambique, procuram materializar algo que se perdeu.

Na instalação surgem ainda cadernos de apontamentos com notas e sinais que documentam um modus vivendi próprio das circunstâncias da época. A casa onde viveu com a família é objecto de alusão em duas imagens apresentadas em dois monitores de televisão: num a imagem da maqueta e da instalação transmitida em tempo real, e no outro a projecção de um filme que mostra a reconstrução de um percurso ao interior da referida casa agora vazia. Ambas as imagens convocam o retorno de uma lembrança que revisitamos num espaço interior, físico e psicológico. Na instalação, o observador parece procurar algo que apenas se vai revelando de modo vago e incerto.

Explorar todas as perspectivas do olhar, esmiuçar a memória, é o que se conclui do uso da terceira dimensão, quer na maqueta quer no filme ou na instalação.

A casa é, assim, símbolo espacial e existencial de um tempo passado que se apresenta num tempo presente.

A tomada de consciência do passado em “Alheava” não é o mero exteriorizar de umas quaisquer lembranças apoiadas no processo funcional e geral de conservação de realidades exteriores, é sobretudo um reavivar, sob a forma de recuperação, de algumas referências. Tornar presente uma situação concreta, enquanto marca histórica de uma história comum, o abandono condicionado, as vivências impedidas, de todos aqueles portugueses que passaram pela experiência da descolonização dos anos 70. Sem pretender acusar, nem condenar, propõe-se dar visibilidade a uma memória feita de silêncio. Ir à procura de resquícios “escondidos”, levantar o véu e, também, não deixar que certas emoções e sentimentos continuem no “escuro” – mais do que um tempo que ficou por esclarecer, é um período marcado por um sentido de perda e de opções impostas que ficou por exteriorizar.

A presença de um caixote, com inscrições da origem e do destino da mercadoria, acentua a intensidade do que se vive na instalação. Nesta perde-se a sensação de dor e fica-se dominado por uma afirmação, de que não vale a pena reviver nem reanimar uma vida que não volta mais. Na perspectiva de toda a geração de portugueses que viu de súbdito os seus projectos e as suas realizações de vida completamente alterados, este é aquele passado que passou de facto. Tal como quando se acorda de um sonho ao qual não se pode voltar – mas, neste caso, o sonho era a realidade.

Retornados ?!! Só alguns, os “outros” como é que retornavam a um lugar a onde nunca pertenceram de facto, lugar de antepassados, lugar de tempos antigos. É assim que muitos vieram para Portugal na condição de deslocados, daqueles que não são de lado nenhum, os errantes. Em busca de memórias ténues, vagas ou que nem sequer as tinham, forçados a abandonar memórias reais, de uma vida, de um projecto de existência ainda em desenvolvimento.

Cristina Alves, 2003

texto Gisela Leal _ alheava - derrotados





Manuel Santos Maia

Alheava – Eu sou um dos derrotados (Centro Cultural de Vila Flor, Guimarães) e Alheava – revisitação (Pavilhão de Portugal, Coimbra)

Neste novo passo no processo de reconstituição das memórias, confrontos e dificuldades que o regresso a Portugal representou para aqueles que tiveram de deixar para trás uma promessa de vida, Manuel Santos Maia introduz uma nova expressão no seu trabalho: a representação teatral. As seus pais são dadas as vozes de dois actores, num diálogo que percorre as vivências de um quotidiano estável em Moçambique, do confronto com a mudança e um conflito que lhes era estranho, ao vazio da perda e, finalmente, ao regresso a um país que nada tinha para lhes oferecer.

Na instalação Alheava – revisitação, o artista reconstitui a fachada da casa onde viveu em Nampula, que vem percorrendo todas as mostras do projecto Alheava. Numa parede, uma imagem do avô contrasta com o discurso do primeiro presidente moçambicano, e enquanto se percorre o espaço ouve-se a voz do pai do artista relatando momentos e histórias da família, circunstâncias que esta experienciou. No espaço são ainda projectadas as imagens de Nampula que foi registando em 8mm: imagens das festas, de viagens, da casa e da cidade.



Manuel Santos Maia

Alheava – I’m one of the defeated (Vila Flor Cultural Centre, Guimarães) and Alheava – revisitation (Portugal Pavilion, Coimbra)

In this new step in the process of reconstitution of memories, confrontations and difficulties that the return to Portugal represented for those who had to leave a life promise behind them, Manuel Santos Maia introduced a new expression within his work: theatrical representation. The voices of two actors are conferred to his parents, in a dialogue that addresses the living experiences of stable daily in life in Mozambique, the confrontation with change and conflict that they were not used to, the void of loss, and finally the return to the country that had nothing to offer them.

In the installation Alheava – revisitation, the artist rebuilt the façade of the house where he lived in Nampula, that appeared in all the exhibitions of the project, Alheava. An image of his grandfather projected on the wall is contrasted with the speech of the first Mozambican president, and as one walks around the space, one hears the voice of the artist’s father as he recounts family stories and experiences that he personally experienced. 8mm filmic images of Nampula are also projected on the walls: images of festivities, travels, home life and the city.

texto Gisela Leal _ alheava








Alheava_dentro_o mar

Manuel Santos Maia

“dentro_o mar” integra-se no projecto “Alheava” que Manuel Santos Maia tem vindo a desenvolver nos últimos anos, apresentando, em cada uma das suas diversas fases, diferentes abordagens a um mesmo tema: o resgate de memórias das vivências nas ex-colónias portuguesas. Nesta exposição o autor desmultiplicou os meios, que, assentes no princípio da instalação, iam do vídeo, passando pela maqueta e pela fotografia até ao objecto escultórico (um caixote vazio, alegoria de vivências, com as inscrições de origem – Moçambique – e de destino – Portugal).

As memórias familiares são aqui recontextualizadas com a sua integração na memória colectiva. O subtítulo “dentro_o mar” sugere-nos simultaneamente o espaço onde foi construída a ponte por onde transitaram as vidas que regressaram a Portugal após a descolonização e o tempo interior de cada história pessoal onde se encerram as memórias. Daqui partiu o autor para o resgate dos registos materiais e imateriais de que é composta a exposição – o álbum de bebé do autor, as fotografias da cidade de Nampula e a reconstituição digital do espaço da casa onde viveu.


Alheava_within_the sea

Manuel Santos Maia

“within_the sea” forms part of the “Alheava” project that Manuel Santos Maia has been developing over recent years, presenting, in each of its various phases, different approaches on the same topic: the retrieval of the memories of life experiences in the former Portuguese colonies. In this exhibition the artist multiplied the resources used. These resources were placed at the beginning of the installation and ranged from video, scale models and photography to sculptures (an empty crate, that serves as an allegory for life experiences, with inscriptions concerning the place of origin -- Mozambique -- and destination -- Portugal).

The family memories are re-contextualised herein through their integration into the collective memory. The subtitle “within_the sea” simultaneously suggests the space that served as a bridge for many people on their return to Portugal after the de-colonialisation period and also the interior period of each personal history encapsulating the respective memories. On this basis, the artist retrieved the material and immaterial records included within the exhibition -- the photo album of the artist as a baby, photographs of the city of Nampula and the digital reconstitution of the space of his former dwelling.

texto João Lima Pinharanda _ alheava






Manuel Santos Maia: a falar para esquecer

João Lima Pinharanda

O trabalho de Manuel Santos Maia concentra-se na memória e no comentário a essa memória, transforma o individual em colectivo e individualiza o colectivo. São memórias de ocupações, percursos, estadas e abandonos, memórias de construções e movimentações, de vida e morte – de pessoas e das suas entidades culturais, de lugares circunscritos e de cruzamento dos múltiplos planos dessa circunscrição.

O campo de representação é o de um lugar e de um tempo passados: Moçambique enquanto território da ex-África Oriental Portuguesa. O ponto de vista é absolutamente europeu: protagonistas brancos e suas memórias imediatas e voluntárias ou inconscientes e profundas. Trata-se de saber em que medida, num jogo de palavras e representações orais (e visuais), num jogo de repetições, desvios, deslizes, erros próprios e alheios, conscientes e inconscientes, o passado pode deixar de ser passado (no sentido de entidade sem acção) e através de que estratégias a evocação do passado se pode tornar entidade activa, ou seja, crítica. As modalidades de exposição dessas memórias, através de documentação objectiva (fotos, maquetas, plantas, textos de época) ou de recontares e rememorações subjectivas, sujeitos às alterações provocadas por estratégias de imagem e por lapsos discursivos fruto do próprio passar de tempo, integram em si próprias as modalidades de crítica desejada pelo artista. A utilização da palavra dita, gravada e reproduzida dos protagonistas selecionados, ou a sua recriação performativa e teatral (voz e corpo), integra essa estratégia. No primeiro caso, temos o sentido de saudosismo e implícita derrota, de rememoração como modalidade mais cruel de esquecimento – Manuel Santos Maia faz-nos receber essas informações com distanciamento, ema frieza que nos devolve o espírito crítico. No outro caso, a desejada separação crítica é alcançada no momento e acto de transcrição da palavra devida ao corpo-real pela palavra e actos de um outro corpo, o corpo-representado. No contexto desta exposição, Manuel Santos Maia cria precisamente uma situação de passagem (ou roubo?) de testemunho entre a pessoa-real (que, no entanto, usa sempre uma máscara para se reresentar) e a máscara (o actor, que esconde sempre uma pessoa): uma mulher assume como actriz o lugar de um homem que testemunhou a sua memória de África, a transcrição manipulada das falas e do género, radicalizou a melancolia profunda do protagonista num ambiente de um desequilíbrio psicológico – a unidade do mundo torna-se afinal dois mundos (dois lugares, dois tempos, dois desejos) desencontrados, sem contacto.

Catálogo da exposição: O contrato social

Comissário: João Lima Pinharanda

Museu Bordalo Pinheiro – 05 de Outubro de 2005 a 08 de Janeiro de 2006




texto Miguel Amado _ alheava





Manuel Santos Maia

Miguel Amado

Manuel Santos Maia nasceu em Nampula, Moçambique, em 1970. Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É um dos protagonistas da cena artística desta cidade, não só pelo seu percurso enquanto criador mas também devido ao papel desempenhado na dinamização de ideias e organização de eventos. No que respeita ao último ponto, destaque-se a sua colaboração em revistas experimentais como a Desvio 265 ou em publicações culturais como a Ideias Fixas, a concepção de ciclos de conferências como inter+disciplinar+idades e artistas comissários ou a ligação aos mentores de espaços expositivos alternativos como o PêssegoPráSemana e o Salão Olímpico. Relativamente à primeira vertente, sublinhe-se o desenvolvimento, desde 2002, do projecto alheava, que conta já com diversas apresentações públicas, realizadas em exposições individuais e colectivas promovidas em contextos periféricos ao circuito artístico institucional.

A designação genérica do trabalho de Manuel Santos Maia enuncia as premissas conceptuais que subjazem à sua reflexão. “Alheava” é a conjugação do verbo “alhear” no pretérito imperfeito. Esta utilização do tempo verbal remete para o passado – este, por sua vez, alude à memória enquanto matéria prima da identidade individual e colectiva. Abordam-se, assim, os mecanismos de produção de imaginário, estabelecendo-se um mapa cognitivo de uma dada experiência vivida. “Alhear” sugere um estado de alienação, um efeito de desvio, uma ausência de raízes, uma sensação de perda, um sentimento de deslocação. A realidade tratada é a da condição pós-colonial reflectida, por um lado, nas vivências dos portugueses que povoaram as diversas colónias africanas no período anterior ao 25 de Abril e, por outro, na trajectória de vida que estes protagonizaram na sequência do processo de descolonização. Trata-se, portanto, de problematizar a noção e as práticas personificadas pelo termo “retornado”.

O modus operandi empregue por Manuel Santos Maia assenta, por um lado, na recolha de materiais pertencentes a membros da sua família e na captação de registos orais desses familiares e, por outro, na encenação destes múltiplos componentes de dimensão biográfica em instalações. Ambos os passos seguem uma metodologia próxima da dos etnógrafos; a cada um destes elementos é atribuindo, então, um estatuto similar ao de artefactos de cultura material. Opera-se, assim, uma transformação da sua natureza que permite a gestação de um sentido de ordem não específica mas global. Os álbuns de fotografias, os móveis e os objectos variados, bem como as várias gravações, passam a constituir uma espécie de espólio no qual estão inscritas as circunstâncias emocionais não só de um grupo particular, mas também de uma comunidade geral.

Intitulada alheava – reconstrução, a proposta de Manuel Santos Maia para o programa de project room do CAV, segue esta linha de intervenção, configurando mais um momento de uma investigação em curso. No centro das atenções está o seu avô, o Senhor Maia. Uma notícia de jornal traça a sua história pessoal e lamenta a sua morte. De entre as palavras que lembram os seus feitos, sobressai um elogio à sua actividade profissional. Era um construtor de casas. O cenário é Nampula, Moçambique. Ancorada nestas referências, estrutura-se uma narrativa crítica da exportação para África dos modelos de pensamento ocidentais, neste caso exemplificados pela introdução nas colónias portuguesas dos princípios da arquitectura modernista. Tal é evidenciado pela existência de reproduções fotográficas das habitações construídas ao longo de décadas pelo Senhor Maia, acompanhadas de maquetas, esboços e estudos preparatórios de algumas delas realizados por estudantes universitários de Coimbra. Esta interpretação é reforçada pela presença de um slide show daquelas imagens e de outras retratando a paisagem urbana da região, bem como de alguns instrumentos de desenho e livros técnicos aos quais o Senhor Maia recorria. A tomada de consciência desta lógica emerge numa banda sonora composta por excertos de uma entrevista feita pelo artista ao seu pai no qual este explora as recordações que tem daquela época.


texto Miguel Amado _ alheava




Manuel Santos Maia

Miguel Amado

Manuel Santos Maia was born in Nampula, Mozambique, in 1970. He studied Painting at the University of Oporto Faculty of Fine Arts. He is one of the leading figures on the Oporto art scene not only due to his path as a creator but also due to the role he plays in stimulating ideas and organising events. In relation to the latter aspect, one should highlight his collaboration in experimental magazines such as Desvio 265 or in cultural publications such as Ideias Fixas, the conceiving of conference cycles such as inter+disciplinar+idades and artistas comissários or his links with the mentors of alternative exhibition spaces such as PêssegoPráSemana and the Salão Olímpico. As for the first aspect, one should stress the ongoing development since 2002 of the alheava project, which has now had several public presentations held in group and solo exhibitions promoted in contexts outside the institutional artistic circuit.

The overall designation of Manuel Santos Maia’s work states the conceptual premises underlying his reflection. “Alheava” is the conjugation of the verb “alhear” [to alienate] in the imperfect past tense. This use of the verb tense refers to the past – which in turn alludes to memory as the raw material of individual and collective identity. In this way, the mechanisms of the production of the imaginary are dealt with, establishing a cognitive map of a given lived experience. “Alhear” suggests a state of separation, an effect of deviation, an absence of roots, a sensation of loss and a feeling of shifting. The reality portrayed is that of the post-colonial condition reflected, on the one hand, in the experiences of the Portuguese people who lived in the several different African colonies in the period before the 25th of April 1974 revolution and, on the other hand, in the path they followed during the process of decolonisation. It is, therefore, a questioning of the notion and of the practices personified by the term “retornado”, which refers to the Portuguese people who returned to Portugal from Africa after the end of the Empire.

Manuel Santos Maia’s modus operandi is, on the one hand, based on the gathering of material belonging to members of his family and on the capturing of the oral registers they possess and, on the other hand, on the staging of these multiple components of biographical dimension in installations. Both steps follow a methodology close to that of ethnographers; each of these elements is then granted a status similar to that of artefacts of material culture. There is thus a transforming of their nature that allows the gestation of a sense of non-specific but global order. The photography albums, the furniture and the several objects now form a sort of booty in that are inscribed the emotional circumstances not only of a particular group, but of a community as a whole.

Manuel Santos Maia’s proposal for the CAV project room, entitled alheava – reconstrução, follows this line of intervention, and forms one more moment in an ongoing research process. At the centre of this attention is his grandfather, Mr. Maia. A news item outlines his personal story and laments his death. A eulogy of his professional activity stands out among the words recalling his achievements. He was a house builder. The setting is Nampula, Mozambique. Anchored in these references is the structure of a narrative critical of the exporting to Africa of western thought patterns, in this case exemplified by the introducing of modernist architecture to the Portuguese colonies in Africa. This is made evident by the existence of photographic reproductions of the dwellings built over the decades by Mr. Maia, accompanied by maquettes, sketches and preparatory studies for some of them made by students at Coimbra University. This interpretation is reinforced by the presence of a slide show of these images and of others portraying the urban landscape of the region, as well as of some drawing instruments and technical books that Mr. Maia used. Awareness of this logic emerges in a soundtrack made up of excerpts from an interview that the artist carried out with his father, in which the latter talks about the memories he has of the time.



texto Óscar Faria _ alheava




Uma cidade em movimento: quatro exposições no Porto

Óscar Faria

Na Galeria Quadrado Azul, Manuel Santos Maia apresenta mais um capítulo do seu projecto “alheava”, no qual, a partir da revisitação de memórias familiares, obtidas a partir de documentação variada – fotografias, filmes, certidões, etc. - , entrevistas e objectos, tenta reconstruir um passado vivido em Moçambique, África. Iniciado em 2002, este trabalho tem passado por vários lugares – Porto, Lisboa, Coimbra, Lagos – e adquirido várias formas, que vão da instalação à “performance”. A complexidade da iniciativa, que ainda prevê mais seis mostras, resulta das diversas problemáticas que são levantadas peloartista, a começar pela questão do pós-colonialismo, que é abordada de forma afectiva – o título global indica a distância com que eram vividos, no caso concreto desta família, os assuntos políticos derivados da colonização portuguesa, embora, como se prova em algumas das fotografias patentes na exposição, o olhar do fotógrafo, neste caso o pai do artista, captou alguns aspectos dessa dimensão – nomeadamente numa imagem em que um homem branco, de pé, olha para os trabalhadores negros, dobrados, certamente explorados por si.

Se os anos 90 ficaram marcados por “Bunker”, de Miguel Leal, a actualidade artística tem em “alheava” um dos seus mais consistentes projectos. Manuel Santos Maia assume simultaneamente os papéis de historiador, arqueólogo, etnólogo, encenador e artista. E cria momentos que podem servir para uma meditação – extensível a outras áreas, como o cinema ou o teatro – acerca da quase total ausência de representações relacionadas com o colonialismo português (o pintor Luc Tuymans tem abordado a dimensão belga do problema, por exemplo). É também desse silêncio que nos fala esta exposição, uma das mais depuradas das realizadas pelo artista, que depois de passar por vários espaços independentes, tem nesta a sua primeira mostra no circuito galerístico.

Óscar Faria – Uma cidade em movimento: quatro exposições no Porto – in Artes Plásticas – Exposições / Mil Folhas – Jornal “Público” de 12 de Mar 2005

texto Óscar Faria


Beleza e Verdade

Óscar Faria

Em ensaio publicado no catálogo da última edição da iniciativa "Skulptur Projekte in Münster" (1997), Daniel Buren aponta como uma das saídas possíveis para a arte pública a recuperação do conceito de beleza. Esse desígnio, hoje tão distante daquilo que se pode ver nas rotundas e praças do nosso país, liga-se certamente à definição do enciclopedista francês Denis Diderot, para quem beleza era a qualidade de gerar no espectador uma ideia de relação. Por outro lado, em "Arte e Eros, Um diálogo sobre Arte", a romancista inglesa Iris Murdoch coloca as seguintes palavras na boca de Sócrates: "Assim, a nossa verdade tem de incluir, tem de 'adoptar' a ideia de estar abaixo do melhor, de que todo o nosso pensamento será sempre incompleto e toda a nossa arte contaminada pelo egoísmo." Por seu lado, um outro participante na discussão, Acasto, era da opinião que a arte é verdade.

A promoção de um fazer artístico baseado nas ideias de beleza e verdade pode ser, nos nossos dias, uma forma de resistência aos mecanismos de alienação promovidos pela indústria cultural. Contudo, onde encontrar o território de experimentação necessário para o desenvolvimento prático daquelas noções? As cidades estão contaminadas pela poluição (seja ela visual, sonora ou ambiental), as paisagens severamente danificadas por um urbanismo descontrolado e mesmo nos locais mais remotos, onde a natureza ainda segue o seu ritmo, a proliferação de sinais de degradação é um facto incontornável. O relacionamento do público com uma obra de arte tem sido sobretudo provocado por eficazes estratégias de "marketing" e não por uma discussão aberta do sentido - político, estético, social - que uma determinada criação pode trazer a um contexto particular (daí a proliferação de estátuas e monumentos "ao gosto" de um autarca, que, quase sempre, está distante das problemáticas colocadas pela escultura pública).

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Já em Braga, no Museu Nogueira da Silva (MNS), está patente "A Casa Onde às Vezes Regresso", de Manuel Santos Maia. Integrada no âmbito de um projecto mais vasto, que tem como título genérico "Alheava", a exposição coloca interessantes problemas museológicos, nomeadamente a forma como objectos de uso quotidiano podem adquirir o estatuto de arte - e aqui a tradição remonta ao "ready-made" duchampiano. No caso do artista, os trabalhos apresentados constituem peças de mobiliário, álbuns de fotografia, "memorabilia" e instrumentos relacionados com a captação e reprodução do real (máquinas de filmar, projectar e fotografar, binóculos, etc.) de alguma forma relacionados com a sua biografia. O facto de ter nascido em Moçambique, e de os materiais expostos se relacionarem com aquele espaço geográfico, introduz uma inesperada dimensão antropológica na mostra.

De resto, não só a montagem da exposição mas também a classificação das peças segue, de perto, as regras da museologia - o facto de o MSM ter uma significativa colecção de artes decorativas serviu igualmente a Manuel Santos Maia para criar uma série de ambiguidades e ecos (os objectos parecem retirados das salas do museu para ocuparem um novo protagonismo no espaço dedicado às mostras temporárias). Existe também outro nível de leitura, mais poético, que empresta a "A Casa Onde às Vezes Regresso" - título de um poema de José Tolentino Mendonça - uma atmosfera de fábula. Quem for curioso irá encontrar, no baú, a habitação distante, o ponto de partida desta viagem por uma intimidade documentada, museificada, onde beleza e verdade coexistem como nos versos de Mendonça: "tivesse ainda tempo e entregava-te/ o coração".

PÚBLICO - SUPLEMENTO MIL FOLHAS DE SÁBADO 26 DE JULHO 2003









Fotografias de Mafalda Santos e José Maia