Monday, March 5, 2007

texto Cristina Alves - alheava_dentro_o mar

Alheava – dentro_o mar

instalação (vídeo, escultura, fotografia, objectos)

2003

Salão Olímpico

Porto






“Alheava – dentro_o mar” de Manuel Santos Maia

“dentro_o mar” faz parte da série de trabalhos do projecto “Alheava”, que Manuel Santos Maia tem vindo a desenvolver ao longo do último ano a partir de um processo de construção repartido em várias fases.

A nível temático, o projecto “Alheava” aborda as vivências nas antigas colónias portuguesas, com todas as mudanças que ocorreram após a descolonização. Todas as mostras evidenciam o processo sensível e emocional que aí esteve e está implicado, e são no seu conjunto como que retratos simbólicos, vestígios documentais de uma situação que marcou a história pessoal de quem por lá passou e, de um ponto de vista mais colectivo, a própria história de Portugal.

O projecto “Alheava” segue uma orientação essencial, resgatar a memória num retorno a um passado através de diferentes registos. No Olímpico, Manuel Santos Maia expõe as suas deambulações, partilhando os seus registos e impulsionando o soltar de reflexões em comunhão com o Outro: num reencontro com a memória.

Extraídas do seu álbum de bebé, as fotografias da cidade e da província Nampula, onde viveu com a família, em Moçambique, procuram materializar algo que se perdeu.

Na instalação surgem ainda cadernos de apontamentos com notas e sinais que documentam um modus vivendi próprio das circunstâncias da época. A casa onde viveu com a família é objecto de alusão em duas imagens apresentadas em dois monitores de televisão: num a imagem da maqueta e da instalação transmitida em tempo real, e no outro a projecção de um filme que mostra a reconstrução de um percurso ao interior da referida casa agora vazia. Ambas as imagens convocam o retorno de uma lembrança que revisitamos num espaço interior, físico e psicológico. Na instalação, o observador parece procurar algo que apenas se vai revelando de modo vago e incerto.

Explorar todas as perspectivas do olhar, esmiuçar a memória, é o que se conclui do uso da terceira dimensão, quer na maqueta quer no filme ou na instalação.

A casa é, assim, símbolo espacial e existencial de um tempo passado que se apresenta num tempo presente.

A tomada de consciência do passado em “Alheava” não é o mero exteriorizar de umas quaisquer lembranças apoiadas no processo funcional e geral de conservação de realidades exteriores, é sobretudo um reavivar, sob a forma de recuperação, de algumas referências. Tornar presente uma situação concreta, enquanto marca histórica de uma história comum, o abandono condicionado, as vivências impedidas, de todos aqueles portugueses que passaram pela experiência da descolonização dos anos 70. Sem pretender acusar, nem condenar, propõe-se dar visibilidade a uma memória feita de silêncio. Ir à procura de resquícios “escondidos”, levantar o véu e, também, não deixar que certas emoções e sentimentos continuem no “escuro” – mais do que um tempo que ficou por esclarecer, é um período marcado por um sentido de perda e de opções impostas que ficou por exteriorizar.

A presença de um caixote, com inscrições da origem e do destino da mercadoria, acentua a intensidade do que se vive na instalação. Nesta perde-se a sensação de dor e fica-se dominado por uma afirmação, de que não vale a pena reviver nem reanimar uma vida que não volta mais. Na perspectiva de toda a geração de portugueses que viu de súbdito os seus projectos e as suas realizações de vida completamente alterados, este é aquele passado que passou de facto. Tal como quando se acorda de um sonho ao qual não se pode voltar – mas, neste caso, o sonho era a realidade.

Retornados ?!! Só alguns, os “outros” como é que retornavam a um lugar a onde nunca pertenceram de facto, lugar de antepassados, lugar de tempos antigos. É assim que muitos vieram para Portugal na condição de deslocados, daqueles que não são de lado nenhum, os errantes. Em busca de memórias ténues, vagas ou que nem sequer as tinham, forçados a abandonar memórias reais, de uma vida, de um projecto de existência ainda em desenvolvimento.

Cristina Alves, 2003