Monday, March 5, 2007

texto João Lima Pinharanda _ alheava






Manuel Santos Maia: a falar para esquecer

João Lima Pinharanda

O trabalho de Manuel Santos Maia concentra-se na memória e no comentário a essa memória, transforma o individual em colectivo e individualiza o colectivo. São memórias de ocupações, percursos, estadas e abandonos, memórias de construções e movimentações, de vida e morte – de pessoas e das suas entidades culturais, de lugares circunscritos e de cruzamento dos múltiplos planos dessa circunscrição.

O campo de representação é o de um lugar e de um tempo passados: Moçambique enquanto território da ex-África Oriental Portuguesa. O ponto de vista é absolutamente europeu: protagonistas brancos e suas memórias imediatas e voluntárias ou inconscientes e profundas. Trata-se de saber em que medida, num jogo de palavras e representações orais (e visuais), num jogo de repetições, desvios, deslizes, erros próprios e alheios, conscientes e inconscientes, o passado pode deixar de ser passado (no sentido de entidade sem acção) e através de que estratégias a evocação do passado se pode tornar entidade activa, ou seja, crítica. As modalidades de exposição dessas memórias, através de documentação objectiva (fotos, maquetas, plantas, textos de época) ou de recontares e rememorações subjectivas, sujeitos às alterações provocadas por estratégias de imagem e por lapsos discursivos fruto do próprio passar de tempo, integram em si próprias as modalidades de crítica desejada pelo artista. A utilização da palavra dita, gravada e reproduzida dos protagonistas selecionados, ou a sua recriação performativa e teatral (voz e corpo), integra essa estratégia. No primeiro caso, temos o sentido de saudosismo e implícita derrota, de rememoração como modalidade mais cruel de esquecimento – Manuel Santos Maia faz-nos receber essas informações com distanciamento, ema frieza que nos devolve o espírito crítico. No outro caso, a desejada separação crítica é alcançada no momento e acto de transcrição da palavra devida ao corpo-real pela palavra e actos de um outro corpo, o corpo-representado. No contexto desta exposição, Manuel Santos Maia cria precisamente uma situação de passagem (ou roubo?) de testemunho entre a pessoa-real (que, no entanto, usa sempre uma máscara para se reresentar) e a máscara (o actor, que esconde sempre uma pessoa): uma mulher assume como actriz o lugar de um homem que testemunhou a sua memória de África, a transcrição manipulada das falas e do género, radicalizou a melancolia profunda do protagonista num ambiente de um desequilíbrio psicológico – a unidade do mundo torna-se afinal dois mundos (dois lugares, dois tempos, dois desejos) desencontrados, sem contacto.

Catálogo da exposição: O contrato social

Comissário: João Lima Pinharanda

Museu Bordalo Pinheiro – 05 de Outubro de 2005 a 08 de Janeiro de 2006