Monday, March 5, 2007

texto Miguel Amado _ alheava





Manuel Santos Maia

Miguel Amado

Manuel Santos Maia nasceu em Nampula, Moçambique, em 1970. Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É um dos protagonistas da cena artística desta cidade, não só pelo seu percurso enquanto criador mas também devido ao papel desempenhado na dinamização de ideias e organização de eventos. No que respeita ao último ponto, destaque-se a sua colaboração em revistas experimentais como a Desvio 265 ou em publicações culturais como a Ideias Fixas, a concepção de ciclos de conferências como inter+disciplinar+idades e artistas comissários ou a ligação aos mentores de espaços expositivos alternativos como o PêssegoPráSemana e o Salão Olímpico. Relativamente à primeira vertente, sublinhe-se o desenvolvimento, desde 2002, do projecto alheava, que conta já com diversas apresentações públicas, realizadas em exposições individuais e colectivas promovidas em contextos periféricos ao circuito artístico institucional.

A designação genérica do trabalho de Manuel Santos Maia enuncia as premissas conceptuais que subjazem à sua reflexão. “Alheava” é a conjugação do verbo “alhear” no pretérito imperfeito. Esta utilização do tempo verbal remete para o passado – este, por sua vez, alude à memória enquanto matéria prima da identidade individual e colectiva. Abordam-se, assim, os mecanismos de produção de imaginário, estabelecendo-se um mapa cognitivo de uma dada experiência vivida. “Alhear” sugere um estado de alienação, um efeito de desvio, uma ausência de raízes, uma sensação de perda, um sentimento de deslocação. A realidade tratada é a da condição pós-colonial reflectida, por um lado, nas vivências dos portugueses que povoaram as diversas colónias africanas no período anterior ao 25 de Abril e, por outro, na trajectória de vida que estes protagonizaram na sequência do processo de descolonização. Trata-se, portanto, de problematizar a noção e as práticas personificadas pelo termo “retornado”.

O modus operandi empregue por Manuel Santos Maia assenta, por um lado, na recolha de materiais pertencentes a membros da sua família e na captação de registos orais desses familiares e, por outro, na encenação destes múltiplos componentes de dimensão biográfica em instalações. Ambos os passos seguem uma metodologia próxima da dos etnógrafos; a cada um destes elementos é atribuindo, então, um estatuto similar ao de artefactos de cultura material. Opera-se, assim, uma transformação da sua natureza que permite a gestação de um sentido de ordem não específica mas global. Os álbuns de fotografias, os móveis e os objectos variados, bem como as várias gravações, passam a constituir uma espécie de espólio no qual estão inscritas as circunstâncias emocionais não só de um grupo particular, mas também de uma comunidade geral.

Intitulada alheava – reconstrução, a proposta de Manuel Santos Maia para o programa de project room do CAV, segue esta linha de intervenção, configurando mais um momento de uma investigação em curso. No centro das atenções está o seu avô, o Senhor Maia. Uma notícia de jornal traça a sua história pessoal e lamenta a sua morte. De entre as palavras que lembram os seus feitos, sobressai um elogio à sua actividade profissional. Era um construtor de casas. O cenário é Nampula, Moçambique. Ancorada nestas referências, estrutura-se uma narrativa crítica da exportação para África dos modelos de pensamento ocidentais, neste caso exemplificados pela introdução nas colónias portuguesas dos princípios da arquitectura modernista. Tal é evidenciado pela existência de reproduções fotográficas das habitações construídas ao longo de décadas pelo Senhor Maia, acompanhadas de maquetas, esboços e estudos preparatórios de algumas delas realizados por estudantes universitários de Coimbra. Esta interpretação é reforçada pela presença de um slide show daquelas imagens e de outras retratando a paisagem urbana da região, bem como de alguns instrumentos de desenho e livros técnicos aos quais o Senhor Maia recorria. A tomada de consciência desta lógica emerge numa banda sonora composta por excertos de uma entrevista feita pelo artista ao seu pai no qual este explora as recordações que tem daquela época.