Monday, March 5, 2007

texto Óscar Faria


Beleza e Verdade

Óscar Faria

Em ensaio publicado no catálogo da última edição da iniciativa "Skulptur Projekte in Münster" (1997), Daniel Buren aponta como uma das saídas possíveis para a arte pública a recuperação do conceito de beleza. Esse desígnio, hoje tão distante daquilo que se pode ver nas rotundas e praças do nosso país, liga-se certamente à definição do enciclopedista francês Denis Diderot, para quem beleza era a qualidade de gerar no espectador uma ideia de relação. Por outro lado, em "Arte e Eros, Um diálogo sobre Arte", a romancista inglesa Iris Murdoch coloca as seguintes palavras na boca de Sócrates: "Assim, a nossa verdade tem de incluir, tem de 'adoptar' a ideia de estar abaixo do melhor, de que todo o nosso pensamento será sempre incompleto e toda a nossa arte contaminada pelo egoísmo." Por seu lado, um outro participante na discussão, Acasto, era da opinião que a arte é verdade.

A promoção de um fazer artístico baseado nas ideias de beleza e verdade pode ser, nos nossos dias, uma forma de resistência aos mecanismos de alienação promovidos pela indústria cultural. Contudo, onde encontrar o território de experimentação necessário para o desenvolvimento prático daquelas noções? As cidades estão contaminadas pela poluição (seja ela visual, sonora ou ambiental), as paisagens severamente danificadas por um urbanismo descontrolado e mesmo nos locais mais remotos, onde a natureza ainda segue o seu ritmo, a proliferação de sinais de degradação é um facto incontornável. O relacionamento do público com uma obra de arte tem sido sobretudo provocado por eficazes estratégias de "marketing" e não por uma discussão aberta do sentido - político, estético, social - que uma determinada criação pode trazer a um contexto particular (daí a proliferação de estátuas e monumentos "ao gosto" de um autarca, que, quase sempre, está distante das problemáticas colocadas pela escultura pública).

(...)

Já em Braga, no Museu Nogueira da Silva (MNS), está patente "A Casa Onde às Vezes Regresso", de Manuel Santos Maia. Integrada no âmbito de um projecto mais vasto, que tem como título genérico "Alheava", a exposição coloca interessantes problemas museológicos, nomeadamente a forma como objectos de uso quotidiano podem adquirir o estatuto de arte - e aqui a tradição remonta ao "ready-made" duchampiano. No caso do artista, os trabalhos apresentados constituem peças de mobiliário, álbuns de fotografia, "memorabilia" e instrumentos relacionados com a captação e reprodução do real (máquinas de filmar, projectar e fotografar, binóculos, etc.) de alguma forma relacionados com a sua biografia. O facto de ter nascido em Moçambique, e de os materiais expostos se relacionarem com aquele espaço geográfico, introduz uma inesperada dimensão antropológica na mostra.

De resto, não só a montagem da exposição mas também a classificação das peças segue, de perto, as regras da museologia - o facto de o MSM ter uma significativa colecção de artes decorativas serviu igualmente a Manuel Santos Maia para criar uma série de ambiguidades e ecos (os objectos parecem retirados das salas do museu para ocuparem um novo protagonismo no espaço dedicado às mostras temporárias). Existe também outro nível de leitura, mais poético, que empresta a "A Casa Onde às Vezes Regresso" - título de um poema de José Tolentino Mendonça - uma atmosfera de fábula. Quem for curioso irá encontrar, no baú, a habitação distante, o ponto de partida desta viagem por uma intimidade documentada, museificada, onde beleza e verdade coexistem como nos versos de Mendonça: "tivesse ainda tempo e entregava-te/ o coração".

PÚBLICO - SUPLEMENTO MIL FOLHAS DE SÁBADO 26 DE JULHO 2003









Fotografias de Mafalda Santos e José Maia