Projecto alheava de Manuel Santos Maia
Manuel Santos Maia faz arte com a mobília da sala de jantar da sua família. Com o serviço de chá da avó. O búzio gigante do irmão gémeo. Colecções de selos de amigos e conhecidos.
Transformou todo um conjunto de objectos familiares num museu itinerante e efémero. Enquanto um museu de arte contemporânea não acolher (em depósito, como se diz) esta ficção de museu , após cada uma das apresentações deste projecto, mesas, arcas, armários, retomam o seu valor de uso quotidiano. Regressam, mais exactamente, à sala de jantar, isto é, ao museu que cada família tem em construção – pelo menos dantes era assim - recuperando a sua aura de objectos únicos.
Na apresentação feita no Museu Nogueira da Silva, em Braga, terá sido onde a exploração de toda esta ambiguidade foi mais flagrantemente exposta. Borges achava que os museus foram idealizados para confundirem os homens. Também aqui a confusão é parte do jogo. Na sala destinada a intervenções no domínio da arte contemporânea da Casa de um coleccionador e amateur d’art transformada em Museu, em que o espólio se encontra preservado tal como quando a casa era habitada, Manuel Santos Maia instalou móveis e outros objectos provenientes da sala de jantar da sua família, em tudo semelhantes a outros espalhados pela casa - das porcelanas ao marfim -, mas aqui investidos da qualidade de constituírem a obra de um artista contemporâneo. De serem consideradas, por conseguinte, como entidades relacionais ou contextuais, capazes de estabelecer laços de sentido com o que as cerca, no caso a vida do artista e o próprio Museu.
De resto, a actividade normal de um museu, como Marcel Broodthaers pôs em evidência, consiste em ordenar, e tornar a ordenar, determinados objectos-fétiche ao sabor da flutuação das cotações na história da arte. Mais recentemente, a ficção de museu, quase um subgénero artístico, tem sido usada como uma estratégia para dar a ver, tornar visível, aspectos mais recônditos da vida e do meio social, em particular, das condições de produção dentro do sistema das artes. Broodthaers refere-se ao seu Musée d’Art Moderne Département des Aigles, em termos que não andam longe das ficções borgesianas: a fiction allows us to grasp reality and at the same time what it hides.
Manuel Santos Maia faz arte com as arcas da família (algumas delas, não tendo tornado a ser abertas, guardam os seus objectos como segredos em estado de readymade) e com os caixotes em que foram transportadas. Na apresentação feita na Fundição de Oeiras a sala de jantar, o que foi possível salvar, era confrontada com cinco enormes caixotes, num simbolismo automático com as imagens que nos ficaram da chegada dos retornados, caixotes amontoados à beira-Tejo, tendo como fundo a Torre de Belém ou o Monumento aos Descobrimentos. As manchetes davam a esta leitura foto-jornalística o inevitável tom alegórico: destroços do fim do império.
Manuel Santos Maia faz arte com a mobília e com a memória da família. Com as cartas, álbuns fotográficos, rolos por revelar e toda a espécie de documentos onde se inscreve a história da família desde que o avô partiu para África - nos anos trinta - até ao regresso da família, no período chamado da descolonização. Utiliza também a memória oral, seja de membros da família, seja de pessoas que tenham vivido o mesmo tipo de experiência. Apresenta ainda, nalgumas ocasiões, livros de história sobre o período em causa. Também produz objectos e faz filmes. Mas é nos objectos (sobretudo nos já feitos) que deposita mais confiança. São o seu santo e senha para aceder a esse continente perdido da infância. Uma colecção de selos guarda em si mais informação do que qualquer enciclopédia. O som de um búzio gigante ultrapassa o mar. É todo um mundo a que podemos ter acesso no mais indiferente dos objectos. Os objectos traduzem, para Walter Benjamin, a organização do mundo numa espécie de língua natural. O que Santos Maia faz é espalhar objectos como um rastro a seguir, como hieróglifos a decifrar.
Nascido em Nampula em 1970 (a Combray a que às vezes regressa), Manuel Santos Maia veio para Portugal, aos seis anos, com a família. Com o Projecto Alheava procura fazer o percurso inverso, partir à descoberta do país natal. Recordar, evocar o passado que vive no nosso presente, constitui toda uma poética da memória que nos habituámos a considerar essencial para a construção da nossa identidade. Iniciado em 1999, o Projecto Alheava tem vindo a absorver a totalidade da sua produção artística, tendendo a tornar-se num projecto de vida. Recorre a todo um conjunto de práticas que constituem uma espécie de património comum da arte contemporânea e que os artistas utilizam como se fossem tubos de tinta, isto é, readymades. Convoca também a ajuda de terceiros. Estudantes de arquitectura tentam elaborar maquetas da casa da sua infância a partir de algumas fotografias da fachada principal. Num happening, dois amigos - na ausência do artista - conversam entre si, e com a assistência, sobre o que sabem do Projecto Alheava e sobre outras memórias familiares sobre o período da descolonização. Uma actriz atravessa o espaço expositivo repetindo obsessivamente palavras do pai do artista.
Teatro de frases (e de sombras) entrecortadas. Romance familiar (quase) sem palavras. Novela social por (interpostos) objectos. A presença das coisas como um irromper do passado (entre parênteses) no presente. Santos Maia dá o seu lugar de autor a objectos já feitos. São eles que contam o modo como a sua vida foi varrida pelo que vulgarmente chamamos os ventos da história. Salvados, o que foi possível salvar, são esses objectos que impedem que, ao olhar para o passado, vejamos apenas um rastro de destroços. Se é impossível recuperar o passado na sua totalidade (Proust e Deleuze talvez discordem) também não é possível sacudi-lo inteiramente para trás das costas, os objectos aí estão a denunciá-lo, como evidências irrefutáveis. Os objectos nunca mentem e acabam sempre por dar mais do que prometem. Como um búzio. Como um serviço de chá.
Manuel Santos Maia faz arte com a mobília da sua família. Este simples enunciado permite situar o artista na confluência de duas tendências que nos vêm dos anos sessenta. Uma que coloca a ênfase na vida do artista – a vida como obra de arte –, é arte tudo o que entre em relação com o viver do artista. E uma outra, de matriz mais “conceptual”, dando a este termo uma abrangência que inclui todo um conjunto de práticas que procura explorar a metamorfose do readymade em signo, ou metáfora, acentuando a arte como ideia, como conceito. No entanto, como se verifica em vários casos, e também no de Santos Maia, objectos, imagens, conceitos, gestos, não são considerados no plano artístico senão em função de uma vida de artista. Se com o readymade de Marcel Duchamp - também com a interpretação que do readymade faz Marcel Broodthaers -, estamos perante uma obra de arte reduzida ao enunciado “isto é uma obra de arte”, em se tratando de uma vida de artista o enunciado será antes, qualquer coisa como, este é o serviço de chá da avó de Manuel Santos Maia. Se na Section des Figures do Musée d’Art Moderne Departement des Aigles, de Broodthaers, a águia era o único assunto - a águia na arte, na história, na mitologia, no folclore - no Projecto Alheava de Manuel Santos Maia o assunto é (a infância de) Manuel Santos Maia.
No catálogo da exposição Vies d’Artistes (em que participaram Ben, Boltanski, Byars, Darboven, Fulton, On Kawara, Messager, Opalka, Penone, Rainer, entre outros), Philippe Lacoue-Labarthe, em tom algo irónico, mas procurando compreender, descreve todo um conjunto de práticas que se têm divulgado desde os anos sessenta:
Tel se photographie (comme s'il était) mort ou, grimaçant de manière atroce, crucifié, à l'agonie, et parce que cela ne suffit sans doute encore pas, macule ces images de peinture noire. Il parle de « sacrifice ». Tel autre, plus ou moins déguisé et grimé à la manière d'un saltimbanque un peu triste, mime en courtes saynètes, toujours par le truchement de la photographie, l'histoire de sa famille et de sa vie, de sa naissance (et même d'avant) jusqu'à sa communion (et au-delà) : comme dans un théâtre ambulant très pauvre, il use d'à peine quelques accessoires et il tient tous les rôles, du père et de la mère, du grand-père, du curé, de lui-même enfant ou adolescent. Tel autre encore inscrit, de manière quasi obsessionnelle, les dates qui ponctuent son existence et son activité, ou consigne avec une sorte de rage méthodique la liste des « One Million Years Past » ou des « One Million Years Future ». Mais il pourrait tout aussi bien, comme cet autre, entreprendre d'enregistrer, selon un protocole minutieux, la suite des nombres naturels, de un à l'infini. Et il y a encore celui qui moule des parties de son propre corps et qui érige ainsi une énigmatique statuaire. Ou celle qui collectionne - des poupées, des images, des proverbes (fictifs ou non) - toutes sortes de « clichés » que, dessinés, photographiés, redessinés, elle assemble en séries ou en compositions qui font comme des expositions votives ou qui suggèrent un rituel secret.
Este tipo de práticas significaria para Lacoue-Labarthe o culminar de uma tendência da arte moderna caracterizada simultaneamente pelo désastre du sujet - quando a representação de Deus deixou de ser o tema da arte - e pelo triunfo absoluto do sujeito - o artista. A desvalorização do elemento mecânico e técnico (ars) vai de para com a valorização do génio e da personalidade do artista: Une grande peinture était d'abord un grand peintre, ce qu'on savait obscurément depuis Vasari. De là à confondre l'œuvre avec l'artiste même, il n'y avait qu'un pas - que Baudelaire, décidément très symptomatique, franchira sans la moindre difficulté en élaborant la théorie du dandysme. La véritable œuvre d'art, on commençait à le soupçonner, était l'artiste lui-même.
A este respeito, no entanto uma tese como a de Walter Benjamin, (recorrendo aqui à formulação que lhe dá Maria Filomena Molder) parece mais produtiva para a arte contemporânea: a existência humana é o fundamento da arte e isto não porque seja o homem o seu criador mas porque é ele o seu eterno motivo. Também ideias dispersas pelo projectado Livro das Passagens – afinal uma sala de jantar é uma passagem em miniatura – e as considerações de Benjamin sobre o coleccionador ajudam a compreender o que um trabalho como o de Santos Maia põe em jogo.
O que importa desde já acentuar, aproveitando o texto citado de Lacoue-Labarthe, é a importância que para estes artistas revestem as marcas do tempo, o assinalar dos momentos determinantes de uma vida. Esta dimensão é da maior importância para a actividade do coleccionador porque, como escreve Benjamin, não são as coisas que vivem nele, mas “é mesmo ele quem vive nelas”. É também o que encontramos na concepção do próprio readymade. Na Boîte Verte escreve:
En projetant pour un moment à venir (tel jour, telle date, telle minute), « d'inscrire un readymade ». - Le readymade pourra ensuite être cherché (avec tous délais).
L'important alors est donc cet horlogisme, cet instantané, comme un discours prononcé à l'occasion de n'importe quoi mais à telle heure. C'est une sorte de rendez-vous.
- Inscrire naturellement cette date, heure, minute, sur le ready-made comme renseignements.
Aussi le côté exemplaire du readymade.
Esta vertente do readymade é a que melhor permite aproximá-lo do universo de um coleccionador – o cruzamento do destino de um objecto com o do seu possuidor, o que faz deste um verdadeiro intérprete do destino. Il suffit de regarder attentivement un collectionneur qui manipule les objets de sa vitrine. A peine les a-t-il pris dans ses mains qu'il paraît en recevoir une inspiration, et semble regarder comme un devin au travers d'eux dans leur lointain.
O readymade, a escolha de um readymade, o encontro entre o autor e o seu objecto, que provocou a revolução que se sabe na concepção de autor, apresenta, no entanto, flagrante paralelismo com o que significa um objecto para o seu coleccionador. Desde logo, ambos são objectos subtraídos à corveia da utilidade e investidos de novas significações. Também Walter Benjamin pressentiu o declínio da arte retiniana destacando a importância do tacto - o impulso de tocar – para o coleccionador. Thierry de Duve refere que ao ser questionado “como é que escolhe um readymade?”, Duchamp terá respondido: « il vous choisit pour ainsi dire. » O que permite a Thierry de Duve concluir : « On ne saurait mieux dire qu'en dehors de sa rencontre hasardeuse avec un objet tout fait, l'auteur n'a aucun statut. »
O primo Pons, a personagem criada por Balzac – a quem Walter Benjamin deve mais do que reconhece no texto sobre Eduard Fuchs –, afirmava já explicitamente uma proximidade entre coleccionador e autor quelque chose peut exprimer jusqu'où va l'amour-propre des collectionneurs, qui, certes, est un des plus vifs, car il rivalise avec l'amour-propre d'auteur. Seria mesmo uma espécie de artista de vanguarda, pois o seu mérito consistiria em antecipar a moda. Para Benjamin, o coleccionador será aquele que secoue le kitsch du siècle précédent et le convoque au « rassemblement ». O primo Pons em discurso directo : - Moi, je crois à l'intelligence des objets d'art, ils connaissent les amateurs, ils les appellent, ils leur font : Chit ! chit !...
Benjamin conta que um coleccionador de livros não podendo conseguir todos os que desejava, passou a ser ele próprio a escrevê-los, a forma mais louvável de os obter. Idêntica atitude parece estar na origem da vocação artística de Marcel Broodthaers, como o próprio refere:
Since I couldn't build a collection of my own, for lack of even the minimum of financial means, I had to find another way of dealing with the bad faith that allowed me to indulge in so many strong emotions. So, said I to myself, I'll be a creator.
Como criador de uma ficção de museu que põe a descoberto as condições materiais da produção artística, Broodthaers tornou-se o exacto oposto da figura institucional do director de museu. Se o museu nos aparece como um dos mecanismos que forjam a identidade de uma nação, como a história da literatura por exemplo, Broodthaers institui antes a identity of the eagle as idea and of art as idea.
Vous verrez au musée de Mönchengladbach une boîte en carton, une horloge, un miroir, une pipe et aussi un masque et une bombe fumigène, l'un ou l'autre objet encore dont je ne me souviens plus, accompagnés de l'expression Fig. 1 ou Fig. 2 ou Fig.0 peinte sur la cloison en-dessous ou à côté de chacun d'eux. Si l'on se fie au sens de l'inscription, l'objet prend un caractère illustratif se référant à une sorte de roman de la société. Ces objets, le miroir et la pipe, soumis à cette même numérotation (ou la boîte en carton et l'horloge et la chaise), deviennent les éléments interchangeables sur la scène d'un théâtre. Leur destin est ruiné. J'obtiens, ici, une rencontre espérée de fonctions différentes. Une double assignation et une texture lisible - bois, verre, fer, tissu - les articulent moralement et matériellement. Je n'aurais pu atteindre cette complexité avec les objets technologiques dont l'unicité voue l'esprit à la monomanie: minimal art-robot-ordinateur.
Duchamp parece ter encarado o readymade como jeu de mots tridimensionnel. Broodthaers utiliza o objecto como mot zéro. Em Benjamin cada objecto de coleccionador encerra em si une encyclopédie rassemblant tout ce qu'on sait de l'époque, du paysage, de l'industrie, du propriétaire dont elle provient. Como assinalou Ernest Bloch, Benjamn agia “como se o mundo fosse linguagem.” O potencial expressivo dos objectos era legível para o filósofo que soubesse traduzir esse potencial em palavras, fazendo-os assim falar. No coleccionador, como na poesia de Baudelaire, les choses sont élevées au rang d'allégorie. O coleccionador é um alegorista.
A sala de jantar, ou de visitas, a que Santos Maia nos convida a entrar, acolhe em si esta associação que Benjamin faz entre alegoria e coleccionador. É um lugar de recordações. A recordação é a palavra-chave da alegoria e o esquema da metamorfose da mercadoria em objecto para o coleccionador.
A sala de jantar é normalmente o lugar mais inabitável de uma casa, a família costuma utilizar outros aposentos, ficando reservada para ocasiões especiais que raramente acontecem, talvez por isso mesmo, tal como um templo ou um museu deserto, seja um lugar de particular apaziguamento. Benjamin evoca as varandas “pelo consolo que a sua inabitabilidade traz a quem já não consegue viver em lugar nenhum”. Quem perde a sua casa fica para sempre com os trastes à porta, está condenado à errância, a que nenhum lugar seja o seu, como o povo judaico depois da ruína do Templo. Escrever, fazer arte, tem sido entendido como partilhar esse destino, não poder encontrar repouso em nenhum lugar. O projecto de Manuel Santos Maia, carregar quase literalmente às costas os seus trastes familiares, de espaço expositivo em espaço expositivo, não deixa de dar corpo a esse simbolismo maior. De resto, a errância, entre a gesta e a diáspora, é das imagens que mais se associam ao destino português.
Antes de exprimir um determinado estádio de desenvolvimento civilizacional, ou o grau de bom senso e de bom gosto dos seus proprietários uma casa, o seu interior é sobretudo uma questão que tem a ver com a biologia. L'aspect physiologique de la collection (Sammlung) est important. Ne pas oublier dans l'analyse de ce comportement que la collection acquiert une fonction biologique évidente avec la construction du nid chez les oiseaux. « Le Trattato sull'architettura » de Vasari y ferait allusion. A sala de jantar é uma caverna, uma caverna entre o grotesco e o arquetípico. Segundo Vasari, a que Benjamin faz referência, a noção de grotesco viria das grutas onde os coleccionadores guardavam os seus tesouros. Por outro lado, Benjamin escreve que não é estranho ao coleccionador o “lugar supraceleste” onde, segundo Platão, se encontram os arquétipos imutáveis das coisas.
Uma sala de jantar é, desde logo, algo entre o bazar e o templo, entre a gare (representa simultaneamente a origem e o apelo do regresso) e o museu, ou mesmo, o mausoléu. Proust compara a estação de caminhos-de-ferro com o museu. Descreve as estações, “esses lugares tão especiais…que, por assim dizer, não fazem parte da cidade e, no entanto, contêm a essência da sua personalidade tão claramente como apresentam o seu nome nos letreiros”, em termos que as fazem aproximar das passagens. Proust compara a estação com o museu porque ambos são lugares que se subtraem às comuns conexões convencionais e porque, acrescenta Adorno, “ambos são portadores de uma simbólica da morte”: A estação “do arcaico símbolo mortal da viagem”, e o museu participa desse simbolismo pelo carácter sempre precário e efémero das criações humanas. Mas só se pode guardar o que não é de todo perecível e o museu aproxima-se de uma estação, podemos acrescentar a Adorno, por ambos serem permanente lugar de origem. Esta relação com a origem tem vindo a desaparecer no museu de arte contemporânea que se compraz num festim autofágico das tendências dominantes do presente, melhor dizendo, das pulsões que dominam o presente. No imaginário português, que transparece no trabalho de Santos Maia, todo o cais é uma saudade de pedra. Entre a poesia e a nova retórica oficial, entre o mito e os factos, com o fim da vocação marítima, o definitivo virar de uma página da nossa história, há um país que entra no museu, há um país em novo movimento de partida.
Tal como uma passagem parisiense também uma sala de jantar é um lugar intermediário entre a rua e a intimidade, entre o bulício moderno e o caos das recordações, entre o bazar e o museu. Tratando-se de família portuguesa com ligações ao ultramar disporá, quase inevitavelmente, de uma secção de carácter etnográfico: uma exposição do mundo português em miniatura e toda a iconografia de um Portugal (do Minho a Timor) dos pequenitos. Como as passagens, uma sala de jantar é, assim, o signo das metrópoles modernas e da dominação imperial do ocidente. Não deixa de ser significativo que na fase final do colonialismo, Portugal fosse apenas a metrópole. Walter Benjamin elogia a tipologia desordenada e vital do bazar perante a ordem violenta do museu – o museu estatal - e sua pretensão de instituir uma história da cultura. Antes de Marcel Duchamp ter criado a Boîte en Valise, o seu museu portátil, já há muito que o interior das habitações burguesas se tinha tornado num pequeno museu para consumo privado, uma espécie de enciclopédia de trazer por casa. A imagem da ideologia dominante e os elementos da sua subversão. Contra a tentativa de forjar uma unidade ou uma “completude”, o acto de coleccionar procura ultrapassar le caractère parfaitement irrationnel de la simple présence de l'objet dans le monde, en l'intégrant dans un système historique nouveau, créé spécialement à cette fin, la collection (Sammlung). Para um verdadeiro coleccionador, esse mundo à parte que é uma colecção, constitui-se como um verdadeiro espaço alternativo aos sistemas de significação dominantes.
Em qualquer sala de jantar somos confrontados com a fetichização da mercadoria e a possibilidade da sua redenção. Não há imagem religiosa, ou mesmo divindade pagã, que perca de todo a sua aura nem objecto, por mais insólito, que, liberto da servidão quotidiana da utilidade, não participe de alguma forma do espírito aurático do lugar. Em profusão de vitrines e aparadores, as pratas da casa e as faianças são como ídolos nos seus nichos. É o paraíso (proibido) das crianças e o habitat natural do coleccionador. São por vezes objectos que entraram de tal modo na vida do seu possuidor que são eles que dão testemunho desse destino de uma forma que as palavras não conseguiriam. Neles se incrusta uma espécie de “memória involuntária”, no sentido de Proust, que em certos momentos permite aumentar o conhecimento que temos da nossa vida. Alberga a presença fantasmática dos dias que passaram e o que resta, podíamos dizer os resíduos sólidos, dos sonhos por cumprir. A precariedade de um destino humano defronta-se com a inesgotável vida de cada coisa: “descobrem-se diariamente mais relações das coisas connosco”, escreve Goethe, há sempre algo, proveniente das coisas, que desperta em nós”. Santuário de uma intimidade aconchegada entre o acumular dos produtos da cultura de massas, em que se preservam as marcas do vivido como uma reserva estratégica de identidade para o homem que já não se reconhece senão enquanto homem da multidão. Enquanto os pátios e varandas interiores acolhem a presença nostálgica da natureza, os salões, salas de jantar ou de visitas, nunca estão suficientemente preparados para enfrentar a invasão do espaço público urbano, por mais fileiras de objectos, por mais protocolos de cumprimento estrito. Num dos seus textos de carácter autobiográfico Walter Benjamin descreve o alvoroço dos dias em que, durante a infância, a família esperava visitas: “Nessas ocasiões, o interior do guarda-louças, que parecia ser o centro da casa e assim «evocava verdadeiramente as montanhas do templo», ficava aberto, «patenteando tesouros semelhantes àqueles de que os ídolos gostam de rodear-se». Surgiam então «as reservas de prata da casa», e o que assim se expunha aos olhares «não se apresentava em dez, mas em vinte ou trinta exemplares. E quando eu olhava para essas longas, longuíssimas filas de colheres de café ou descansos para as facas, de facas de sobremesa ou garfos de ostras, o prazer que esta profusão me dava competia com o receio de que os convivas esperados fossem todos iguais uns aos outros, como os nossos talheres».
Mundo de afinidades secretas, uma sala de jantar é em tudo o equivalente e a síntese de uma passagem parisiense - também ela é uma cidade e um mundo em miniatura. O mundo dos objectos que rodeia o homem toma de uma forma cada vez mais brutal a forma de mercadoria, Benjamin assiste à desintegração da cultura em objectos de consumo. A mercadoria encontra expressão na poesia de Baudelaire na forma de autoalienação, de “esvaziamento da vida interior.” Arrancar as coisas às suas correlações habituais é um processo muito característico de Baudelaire que está em correlação com a destruição das correlações orgânicas na intenção alegórica. Esta opera pela “rememoração” que é o esquema da metamorfose da mercadoria em objecto para o coleccionador. Confundindo-se cada vez mais com um shopping center, o museu de arte contemporânea busca a sua justificação (que não salvação) em ser um dispositivo particularmente ágil para espelhar (que não reflectir, pensar) as fantasmagorias criadas pelo tempo presente. O objectivo de Benjamín era interpretar, os sonhos-fetiche representados pelo acumular de bens de consumo das decadentes passagens parisienses, nos quais os rastros da história sobreviviam em forma focilizada. O inventário de fragmentos culturais petrificados, obsoletos falavam a Benjamín (nota Adorno) como os fósseis, ou as plantas de herbanário, falam ao seu coleccionador. Aquilo que Proust experimentou com o fenómeno da reminiscencia, pretendia Benjamín “exprimentá-lo em relação às modas culturais.”
A forma como determinados objectos atingem o seu coleccionador apresenta flagrantes analogias com a famosa memória involuntária de Proust. Gilles Deleuze observa que ela só intervém em função de uma forma de signos muito particulares, a que ele chama signes sensibles: Nous appréhendons une qualité sensible comme signe ; nous sentons un impératif qui nous force à en chercher le sens. Alors, il arrive que la Mémoire involontaire, directement sollicitée par le signe, nous livre ce sens (ainsi Combray pour la madeleine, Venise pour les pavés..., etc.).
Vejamos como o processo se verifica com o narrador de Du Côté de Chez Swan :
Et dès que j'eus reconnu le goût du morceau de madeleine trempé dans le tilleul que me donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux), aussitôt la vieille maison grise sur la rue, où était sa chambre, vint comme un décor de théâtre s'appliquer au petit pavillon, donnant sur le jardin, qu'on avait construit pour mes parents sur ses derrières (ce pan tronqué que seul j'avais revu jusque là) ; et avec la maison, la ville, depuis le matin jusqu'au soir et par tous les temps, la Place où on m'envoyait avant déjeuner, les rues où j'allais faire des courses, les chemins qu'on prenait si le temps était beau. Et comme dans ce jeu où les Japonais s'amusent à tremper dans un bol de porcelaine rempli d'eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongés s'étirent, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnaissables, de même maintenant toutes les fleurs de notre jardin et celles du parc de M. Swann, et les nymphéas de la Vivonne, et les bonnes gens du village et leurs petits logis et l'église et tout Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé.
Enquanto em Proust há objectos, signes sensibles, que possibilitam como que uma ressurreição do passado, em Benjamin estaremos antes perante indícios, vestígios, manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que a deixou.
O coleccionador é aquele que estuda e ama as coisas “enquanto palco, teatro do seu próprio destino.” Não sendo Manuel Santos Maia propriamente um coleccionador, a forma como utiliza colecções de objectos para apresentar como projecto artístico a forma como esses objectos atingiram a sua vida, o seu destino cruza-se com o destino dos seus objectos, merece que nos aproximemos do seu trabalho do lado do ciclo mágico em que Walter Benjamin envolve o coleccionador e os seus tesouros. Recorde-se que para Proust os objectos, signes sensibles por efeito da memória, constituem em si mesmos um começo de arte, são eles que nos lançam no caminho da arte.
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