Monday, March 5, 2007

texto João Sousa Cardoso

alheava - nampula

Manuel Santos Maia







A SELECÇÃO


O exercício fotográfico foi, desde as primeiras

experimentações por Daguerre e Fox-Talbot, na década de 1830, definido pelo princípio

de afirmação de uma selecção da realidade. O conjunto fixado na imagem resultava, invariavelmente, de uma

construção encenada (a unidade nos retratos de família), da reiteração da singularidade de determinado

s objectos (os monumentos e o exotismo nas excursões locais ou internacionais) ou, mais

raramente, de uma observação sistematizada de realidades votadas ao desaparecimento (sendo o projecto de Eugène

Atget o mais radical da fotografia pré-moderna). A fotografia inicia um novo momento cultural em que o

mundo é atomizado pelo olho mecânico da câmara, miniaturado e multiplicado. O

século XX ocupar-se-ia do desenvolvimento destes pressupostos e o olhar ocidental assimilaria

rapidamente as gramáticas visuais dos primeiros

modernistas (o formalismo de Strand e Weston é, em poucos anos, popular) e colocar-se-ia, crescentemente, na

necessidade de absorver ou ser afectado pelas reconfigurações constantes das imagens. O

olhar civil tornava-se descontínuo, passava a organizar-se por

enquadramentos e permitia ao sujeito, a cada passo, sair de si e imaginar a sua própria imagem. A percepção do real

convertia-se em apreensão fotográfica.


O ensaio continuado que o Manuel Santos Maia tem vindo

a desenvolver em torno das possibilidades de representação duma história familiar,

no Moçambique de meados do século XX (Alheava)

interpela directamente as no

ções culturais de colecção e de memória e com

isso, inevitavelmente, o problema da selecção... que é um problema eminentemente fotográfico.

A história da fotografia é guiada pelo desenvolvimento daquilo que, em cada momento, foi entendido,

defendido e experimentado como selecção. Mesmo quando enfatiza a construção e mais se demarcada d

a tradição realista, a fotografia não se liberta, como notou imediatamente Roland Barthes,

do referente; e o olhar que se proponha heterogeneizar a coisa, terá de proceder por operações selectivas. Ao observador

(ou spectator) interessado nessa selecção, por seu lado, compete desdramatizar as imagens

e enfrentá-las na sua materialidade histórica (relativa, pela reprodutibilidade ontológica) e, paralelamente, assumir a imedia

tez do medium, que qualifica o momento da produção fotográfica, mas também o da sua leitura.

Ou seja, por um lado, resgatar as imagens ao circuito ideológico de homologação em que se inscrev

em; por outro, compreender que a impressão que faz aparecer a fotografia (tradicionalmente

na chapa ou na película e, de seguida, no papel) é a mesma impressão com que a imagem

se nos fixa mentalmente e conduz a um conhecimento mais mnemónico que dialogante (“Se a dialéctica é esse pensamento que domina

o corruptível e converte a negação

da morte em capacidade de trabalho, então, a Fotografia é indialéctica: ela é um teatro desnaturado em que a morte

não pode «contemplar-se», reflectir-se e interiorizar-se.”[1]).

Mas a lógica selectiva em fotografia opera a múltiplos níveis, dos quais destaco os três seguintes,

por estruturarem o fotográfico no que ele tem de além-fotógrafo:

1- Poderíamos chamar-lhe uma selecção pela duplicação. Se o fotográfico funciona como efei

to de prova – e cumpriu essa utilidade desde os primeiros ensaios, na catalogação judicial –, porque se funda na

real existência do objecto e assegura que o facto é passado mas que

necessariamente aconteceu (o “isto foi” barthiano), a identificação do seu referent

e é sempre problemática ou, pelo menos, equívoca. A fotografia trabalha, justamente, o devir temporal, em cuja espiral

lança os objectos que pretende fixar, sujeitando-os a um processo de

transfiguração interminável (como é o tempo e como são criaturas históricas os seus observadores).

Os objectos fotografados não detêm uma identidade e quando nos parece entrevê-la, é

uma quase-identidade, um reconhecimento diferencial que – daí, Proust desconfiar do r

efluir do tempo pela fotografia -, no limite, funciona como contra-recordação. A

imagem fotográfica é condicionada por critérios de selecção interna que,

governados pelo acaso do instante do registo e pela passagem do tempo, escapam ao fotógrafo,

ao fotografado e ao observador e que se relacionam directamente com a diferença produzida

pelo duplo.

2- Na primeira metade do século XIX, Fox-Talbot concebe

séries fotográficas que obedecem aos cânones de

género instituídos pela pintura: retrato, cena

doméstica, paisagem urbana, paisagem natural, natureza morta... Mas, a história da fotografia ficará marcada,

até hoje, pela tensão mantida com a pintura. A produção teórica e alguns pintores tenderam

a subestimar o pensamento fotográfico em favor dos procedimentos técnicos, pelo

que os fotógrafos mais ambiciosos foram conduzidos a projectos de investigação voltados sobre o papel social,

estético e moral da fotografia nas sociedades pós-industriais que, frequentemente, se

orientaram por uma argumentação defensiva relativamente à longa tradição pictórica.

O desenvolvimento das práticas fotográficas é como que acompanhado por um

processo de recalcamento por parte dos próprios praticantes do métier. A recusa da

fotografia como exercício predador, leva alguns a sugerirem a substituição

da expressão “«tirar» uma fotografia” por “«fazer»

uma fotografia”, outros a valorizarem o labor (a quantidade de

registos realizados) e o vagar (o tempo de espera e de observação) até à obtenção

da imagem idealizada; outros ainda, na recusa da primazia tecnológica, impõem-se limites pelo uso de câmaras

arcaicas (entre eles, contam-se Walker Evans, Cartier-Bresson ou Robert Frank). Só

com o resgate do legado de Duchamp (e o questionamento profundo da oficinalidade

na criação estética) e a emergência da pop art (e a reinvenção do realismo),

na segunda metade do século XX, os fotógrafos assumirão uma independência estética e tecnológica da

fotografia, encararão o problema da artisticidade e da museologização e aceitarão,

sem complexos, o olhar rápido como o olhar primeiro da câmara.

Por se ter desenvolvido num esforço de resistência a si própria, a fotografia comporta

– não apenas teoricamente, mas - historicamente, uma dimensão de auto-censura. Podemos, com isto, assinalar um segundo

tipo de selecção a que a fotografia está sujeita: a auto-selecção.

3- Uma terceira forma de selecção em fotografia será a que deriva dos conceitos de studium

e punctum (Barthes, novamente). Ao olharmos uma imagem fotográfica, haverá uma

leitura global e empenhada que é sobretudo cultural e visa um treino continuado, o

studium. Mas é por aquele elemento particular que se me dirige imediatamente e que

me afecta, que eu fixarei - não a imagem, mas – o problema (para mim) da imagem, o punctum.

Barthes explica que e

ste segundo elemento da fotografia que desestabiliza o primeiro, “é também picada, pequeno orifício,

pequena mancha, pequeno corte – e também, lance de dados.

O punctum numa fotografia é esse acaso que nela me fere.[2]” Enquanto o studium

reporta à análise intelectual, à avaliação, ao contrato firmado entre o criador e o fruidor, onde o último procura refazer,

no sentido inverso, as opções e as contingências sobre as que fotógrafo trabalhou; o pu

nctum é um suplemento de sentido – agudo – que eu acrescento à fotografia e

que, apesar disso, já se encontrava latente na própria imagem. Sendo a selecção

desse elemento da minha responsabilidade, ela tem maiores implicações que

a da mera escolha e a do apontar. A imagem fixa que imobilizou no seu enquadramento os

seus elementos, pode ver-se desapossada daquele que se me apresenta como punctum

da imagem. Esse pormenor ganha, ao meu olhar, vida própria, exterioriza-se à fotografia una e deixa induzir,

no seu lugar, um espaço vazio ou negativo, produzindo um campo cego. Trata-se, pois,

de uma selecção de intensidades que corrompe virtualmente a integridade da imagem inicial.

A negação da factualidade (o referente a que Barthes liga inelutavelmente a fotografia) que as próprias fotografias

comportam, faz delas espectros circulares que existem e significam na medida em que

lhes emprestarmos uma orientação (donde, a suma importância que a associação entre texto e

imagem fotográfica representa em toda a produção surrealista, sendo que, para Susan Sontag e Rosalind Krauss, a fotografia ocupa

o lugar central daquele movimento), as

contextualizarmos e, sobretudo, as conseguirmos desmontar nos vários processos de selecção que estiveram na sua origem,

a que foram sujeitas até chegarem a nós e aos quais continuam absolutamente expostas.

O problema da selecção é

pois, como o Manuel Santos Maia cedo compreendeu e tem reconduzido

ao espaço público, o conjunto

de questões morais e estéticas que define a imagem fotográfica,

na disponibilidade de se deixar reescrever ou no seu poder

de testemunho, conforme o que delas ou com elas queiramos fazer.

João Sousa Cardoso



[1] BARTHES, Roland, A Câmara Clara, Edições 70, Lisboa, 2003, p. 127.

[2] BARTHES, Roland, A Câmara Clara, Edições 70, Lisboa, 2003, p. 47.